quinta-feira, 21 de abril de 2011

PORNOGRÁFICA

(TEXTO EXTRAÍDO DO BLOG: "AFETO LITERÁRIO" DA AUTORA LETÍCIA PALMEIRA)




"Talvez tivesse desejado confiar todas aquelas coisas a alguém. Mas como contar um mal-estar inacessível, que muda de aspecto como as nuvens, que redemoinha como o vento? Faltavam-lhe as palavras, a ocasião e a ousadia."

 
(Flaubert, in Madame Bovary)



Estou lúcida, limiar, plebeia de refinados modos e recito ao falo que me preserva à sede intacta ainda que me fuja o desejo esganiçado por amor. Preciso conversar a respeito de qualquer assunto que não seja o superficial objeto que gira estrangulado na boca dos comuns. Preciso respirar outro ar que não seja o ar das ruas trafegadas por pés que sobem e descem escadas ou morrem atropelados pelas horas destinadas a nos matar. Preciso me comunicar de forma instantânea, mas que o instante perdure por mais de uma semana, visto que eu preciso sobreviver a mim. Estou sufocada pelo falso calor humano despejado em minha caixa de e-mails. Preciso de uma bebida forte que não aquela do bar de ontem que me fez tombar aquática e nua na imperfeição de um corpo masculino que não me atingiu de orgasmos e sequer chegou perto de me penetrar de abuso, se fosse estupro, ah, se fosse paixão. Preciso me politizar e saber mais a respeito das mortes que parecem não existir enquanto arqueja seu pequeno esqueleto o grilo que botei de castigo dentro de minha cabeça desde que nasci. Preciso de emergência, de urgências, de pressa nas coisas mais calmas e, por favor, não me atraque o navio de minhas dúvidas com citações retiradas de livros que eu já li. Farte-me em nova atitude que nada seja semelhante a minha, tão século vinte, tão antepassado algum. Farte-me de senhoras palavras que, ora dizem tudo, ora escondem-se subjetivas de tão tímidas que estão. Eu ando sempre equilibrada em bandos e sofro de pavor de ir à cozinha porque há ratos até mesmo nas casas mais limpas. Farte-me o umbigo de meu rei que move a cabeça negativamente sempre que dizem amém os crentes fajutos vestidos de cetim em porta de templos. Farte-me de decência para que eu possa trabalhar e entender que é preciso que eu continue porque, sem mim, o mundo estanca e convença-me disto, pois, do contrário, serei a mais puta das viventes e serei decadente em clara fisionomia caminhando por este mundo sem nome próprio, sem reservas e sem proteção que não seja a borracha que rompe o que já fora rasgado desde os primeiros anos que me vivenciei. Seja meu ouvinte ou hóspede leitor ou amante e venha à minha cama e faça-me de quatro o que por anos pratiquei de forma romântica escondendo gritos em furos de lençóis. Faça-me pornográfica já que não posso sibilar ingenuidade, pois minha alma não fora castrada ao tempo certo e hoje desejo incendiar cidades inteiras em busca de alguém que não seja o fraco que abandona a febre para unir-se à mulher que pensa em flores e veste adequadamente sua vida raquítica de sensações. Que morra o homem que não ouviu o estampido de meus gritos e partia minha vida em centenas de necessidades que agora me enfartam extraordinária fêmea cheia de contemplações. Farte-me a vida, a ida e a sorte de minhas rainhas invertidas e despreocupadas amaldiçoando leituras de tarô. Faça algo estúpido ou escandalosamente sujo ou impróprio ou pecaminoso que já não posso viver com esse gosto humano de quem goza dias vivendo uma vida que não se sabe regida ou se entregue às perseguições. Farte-me até os talos de minha seiva que desejo o contrário do clássico rubor das meninas que desistem da guerra, casam-se e tornam-se estéreis de qualquer vontade e, abobalhadas, fazem compras ou classificam seus filhos de acordo com a família que as degenerou. Não me faça humana. Construa-me monstruosa, Afrodite Escatológica, e me faça amar de grosso afeto qualquer mísero inseto que sobrevoe minhas marcas de um futuro que está por tempos incerto. Faça-me sangrar e devora-me em dor ou então abandone-me aos vícios para que eu me transforme em qualquer outra espécie que arca mentiras, defende hipocrisias e chora silenciosa encalacrada de rancor.