domingo, 1 de maio de 2011

A METAFÍSICA CONCRETA DO MEDO

Para alguns teóricos – como os discípulos de um Carl Gustav Jung – o imaginário é um tipo de todo uniforme e regular. Como uma paisagem sem acidentes, a planície perpétua do imaginário se estenderia de um ponto geográfico a outro, de uma mente a outra e, em alguns casos, de um povo a outro: um conto popular aqui se repetindo como narrativa oral acolá. Trata-se de uma teoria fascinante, mas cujo encanto é superficial: apesar de todas as semelhanças, o “terreno” do imaginário não é regular, muito menos uniforme. Mas qual seria a explicação para determinados padrões constantes na esfera da atividade imaginativa humana além da crença em um repositório de formas, qual guarda-roupa imaginativo universal, à disposição em algum ponto esquecido da psiquê? É evidente que Jung pensava em um repositório codificado naquilo que, para sua mente de médico e cientista do início do século XX, constituía a única possibilidade de armazenamento de informações culturais de uma forma mais visceral: o sangue e o solo (ou, resumidamente, a raça). Nesse caso, explicações que utilizam um background menos determinista são bem mais interessante: as narrativas se repetem, em parte, porque os fenômenos que as originaram – ainda como mitos de origem, ritual e evocação – são semelhantes em todos os quadrantes do mundo, especialmente a experiência decisiva da morte. Além disso, a descrição do universo exterior ao indivíduo, que, para ser controlado – e distinguido do interior –, exige um esforço sistemático de enquadramento de todos os seus fenômenos. Diferentes linguagens surgem nesse processo, tanto para fenômenos cotidianos e já controlados pela experiência, como para fenômenos novos e ainda não adequadamente classificados em todas as instâncias possíveis da experiência. O florescimento dessa linguagem supernatural – utilizemos esse nome – logo toma de assalto o imaginário e consolida as imagens prototípicas – e não arquetípicas – que, em pouco tempo, serão de conhecimento e usufruto de todos de dada cultura. É assim que surgem fantasmas e assombrações de mortos no Japão e no Haiti, na Alemanha e na Patagônia. Mas cada história é distinta, embora seja axiologicamente a mesma: os jumbees haitianos não são iguais ao mito do Doppelgänger alemão. As marcas do desenvolvimento histórico de cada cultura humana marca a distinção dos seres imaginários e sua dispersão pelo mundo.






No Japão, a tradição ainda oral e folclórica ligada a seres sobrenaturais – demônios, raposas (lá consideradas seres místicos), fantasmas e aparições – sempre foi abundante, fosse de corte religioso (alegorias morais budistas) ou profano. Esse rico material foi compilado, ampliado, editado e manipulado muitas vezes desde o início da cultura escrita no Japão: um dos mais criativos e inventivos foi Ueda Akinari (1734-1809). Seus Contos da Chuva e da Lua (em japonês, Ugetsu Monogatari, cuja publicação data de 1776) que retomam o formato dos contos compilados clássicos (os monogatari) mas atualizando-lhes a forma, está a par e passo do ressurgimento, pelas mãos de autores como Jacques Cazotte, da literatura fantástica no Ocidente, pois o clássico de Cazotte nesse gênero, Le Diable Amoureux, foi publicado em 1772. Mas nos contos de Akinari, o fantástico que lemos é de uma natureza diferente. É bem verdade que ainda estão lá as aparições, os fantasmas, as possessões, os demônios, as vinganças post mortem. Mas o universo fantástico dos contos de Akinari é, ao mesmo tempo, mais vago (muitas traduções utilizam o adjetivo “vago” na tradução de Ugetsu Monogatari) e muito menos ambíguo. Por sua natureza vaga, o conto sobrenatural japonês – ao menos, em seu formato “clássico” ou diretamente vinculado aos ciclos narrativos medievais do Japão – alcança dimensões muito mais amplas, ultrapassando até os níveis alegóricos: isso permitiu que o cineasta Kenji Mizoguchi realizasse uma leitura fílmica extremamente particular de Ugetsu Monogatari que, de certa forma, ainda preservou muito da atmosfera do livro. Por outro lado, a ambigüidade é deslocada e repostulada em outros termos: não se trata da dúvida diante da existência ou não de uma acontecimento sobrenatural, mas diante da amplitude das conseqüências que esse súbito entrecruzamento de distintos universos (o factível e o sobrenatural) pode ter: assim, as personagens coabitam com aparições de mortos, em edifícios arruinados, por anos, até descobrirem o engodo e perceberem como a realidade sonhada e a realidade vivida parecem compartilhar da mesma matéria. Nessa situação, tais personagens tendem a repensar sua vida antes e depois do embate fantasmagórico: muitos enlouquecem, outros saem fortalecidos e profundamente mudados, física e mentalmente. Mas a aura alegórica não anula a materialidade da ameaça que a aparição sobrenatural representa para as personagens: os fantasmas exigem sacrifícios em forma de carne e sangue – ou sanidade. Esse universo – que logo chegou ao campo visual graças aos trabalhos de artistas como Hokusai – no qual a vida vivida pode ser a vida sonhada e no qual ambas possuem peso semelhante e materialidade inegável sobreviveu e continua marcando a ficção terrorífica japonesa mesmo nos dias de hoje: sucessos como Ringu apresentam todas as características que enumeramos aqui, atualizadas com o registro tecnológico. Mas ainda existe os non sequitur de tramas que não obedecem uma lógica narrativa que obedeça o primado da verossimilhança, a natureza ilusória da vida diante do peso material do sobrenatural, a mortal substância de uma ameaça que, aparentemente, parece saída de uma alucinação. As noções budistas de que a realidade circundante ao homem é mero embuste serviriam de combustível para lendas, elas mesmas perfeitas narrativas de terror, por sua vez adaptadas para o cinema por Kaneto Shindo, Onibaba (1964) e Kuroneko (1968), transformando-se rapidamente em filmes demiúrgicos e renovadores das matrizes dos filmes de terror, gênero em constante risco de recair na banalidade.





Donos de formas teatrais extremamente estilizadas e complexas – como o teatro nô, kabuki e bunraku –, os japoneses sofisticaram, pelo viés minimalista, a máscara de seus monstros através da expressividade pura. Essas máscaras, muitas delas de fato assustadoras, constituem – com suas cores, traços, estilização etc. específicos – um dialeto sígnico, fluente para os iniciados e evidente para aqueles que assistem a peça pela primeira vez. Essa excelência na representação por expressões se manteve no cinema: mesmo em alguns episódios da série popular National Kid, com todo seu non sense involuntário, uma máscara de maquiagem branca e negra, destacada pela expressividade do ator, indica claramente ao espectador a presença de um vilão razoavelmente terrível. A estilização persiste como traço por excelência de filmes de terror japoneses modernos: tanto Ringu quanto Ju-on têm seus momentos culminantes quando a aparição se arrasta, de modo anti-natural, para agarrar a presa humana. Mas, talvez, os dois momentos máximos de estilização visual do horror no cinema japonês sejam o já citado Ugetsu Monogatari na adaptação de Mizoguchi e Kwaidan de Masaki Kobayashi (1964). Nesse sentido, Kwaidan surge não apenas como a mais bela experiência visual do cinema de terror japonês, com uma fotografia colorida de elaboração e beleza barrocas, mas como um dos mais interessantes e originais filmes de terror dos anos 1960, rivalizando qualitativamente com as grandes e demiúrgicas obras produzidas nessa década, que serviriam de parâmetro – e como fonte de imitações – de sucessivas gerações de cineastas do cinema de terror: Psycho, de Alfred Hitchcock (1960); Pepping Tom, de Michael Powell (1960); The Innocents, de Jack Clayton (1961); The Haunting, de Robert Wise (1963) e Rosemary\’s Baby, de Roman Polanski (1968).





Curiosamente na produção fílmica – anterior e posterior a Kwaidan – do diretor Masaki Kobayashi há poucos indícios de um interesse especial pelo fantástico. Alguns dos melhores filmes do diretor são dramas sociais terríveis ambientados ao final da “era dos samurais” (Seppuku), dramas históricos sobre lutas de diferentes clãs ao final da Idade Média japonesa (Jôi-uchi: Hairyô Tsuma Shimatsu) e mesmo dramas revelando o desumano tratamento que o exército nacionalista japonês dava aos chineses durante a Segunda Guerra Mundial (sua trilogia Ningen no joken ou, na tradução para o inglês, Human Condition, um de seus grandes êxitos comerciais e artísticos). Filmado logo depois de Seppuku, Kwaidan tomaria dois anos de trabalho de produção, em geral concentrado nos imensos estúdios da Toho: o diretor realista pode liberar completamente sua fantasia em composições magníficas que aludem aos grandes quadros da arte japonesa.





Se a escolha de um diretor tradicionalmente associado a películas de realismo social para a direção de um filme de terror fantástico foi curiosa, a obra original – adaptada por Yôko Mizuki – também possuía suas peculiaridades. Kwaidan: Stories And Studies Of Strange Things, foi uma coletânea de contos, publicada em 1905, amplamente baseados em contos sobrenaturais japoneses de diversas épocas coligidos pelo escritor Lafcadio Hearn. O tom geral da obra é assemelhado aos tomos dos irmãos Grimm coletando os contos populares da Alemanha e da Europa Central: algumas narrativas são adaptações diretas de textos mais antigos, retrabalhados (com a provável ajuda, nos aspectos específicos da tradução, da esposa de Hearn, Setsu Koizumi); outras, reminiscências pessoais do autor, baseados em histórias que ouvia cotidianamente; um terceiro grupo, lembranças de infância que Hearn transformou em ficção já aclimatada. Descendente de gregos e irlandeses, Hearn, após uma temporada nos EUA, migraria para Japão inicialmente como correspondente jornalístico. Logo, a paixão pelo país que descobrira o levaria a adotar uma identificação completa com ele: torna-se professor da Escola Normal de Matsue (posteriormente, as autoridades japonesas homenagiariam o escritor com dois monumentos nessa cidade) e, após se casar com a filha de samurais Setsu Koizumi, niponisa-se definitivamente, trocando o nome para Koizumi Yakumo ao obter a cidadania japonesa. Apesar dessa identidade e desse amor pela cultura japonesa, o autor ainda mantinha, talvez inconscientemente, o fascínio bem ocidental pelas ghost stories, tão populares a partir de meados do século XIX, trazendo-as das tradições orientais para um formato narrativo do conto de terror/conto popular, realizando um belo mix entre premissas e conteúdos de ambas as culturas. É igualmente verdade que esse mix não estava livre de becos sem saída ideológicos, como a tendência forte nos ao exotismo gratuito que existe em suas narrativas orientais, ressaltada por críticos (um dos mais conhecidos foi George Orwell). É preciso ressaltar, contudo, que Hearn não é antropólogo, mas narrador: a paralaxe, a distorção de ponto de vista, que a própria escolha de um formato narrativo impõem, traz à tona o exotismo, pois, nos contos, mesmo paisagens cotidianas e prosaicas, alteradas pelo ponto de vista narrativo, são transfiguradas como exóticas. De qualquer forma, o filme de Kobayashi é a melhor resposta ao argumento raso de Orwell e sua ingênua visada anti-colonialista: nas mãos do diretor japonês, a narrativa adquiriu a fluidez visual da grande arte japonesa (poética, musical, visual, narrativa e, mesmo, caligráfica). Para aqueles que desconhecem a fonte do filme e a obra de Lafcadio Hearn, trata-se de uma obra visceralmente japonesa, no seu sentido mais tradicional que essa expressão pode ter.





A abertura do filme já sugere seu tom simultaneamente poético e sombrio: massas fluidas, líquidas, multicoloridas (tons de preto, azul e vermelho) deslizam por um fundo branco, enquanto os nomes da equipe e os títulos dos quatro contos são enumerados. Dos 20 contos que constam do livro de Hearn, Kobayashi e seu roteirista, Yôko Mizuki, escolheram dois, (os episódios restantes são visões pessoais do universo de Hearn) os quais puderam estender e “traduzir” com imensa eficácia cinematográfica ao longo dos 161 minutos de filme. O primeiro episódio é “O Cabelo Negro”: um jovem e empobrecido samurai abandona a esposa para assumir um cargo (e um matrimônio) bem mais vantajoso no interior. Mas a felicidade fornecida pelo conforto e pela riqueza parecem insuficientes para o samurai: ele despreza a nova esposa, recusando-se a compartilhar o leito nupcial. Findo seu tempo de contrato como funcionário, divorcia-se da nova esposa e volta para a antiga, cujo amor nunca esqueceu. A velha propriedade na qual morava parece um pouco dilapidada, mas o cômodo no qual a esposa trabalhava com seu tear manual parece não ter mudado absolutamente nada com o passar de tempo, o mesmo valendo para a esposa, cujo cabelo negro e denso continua sedoso e brilhante. A esposa regozija-se por ter seu amado de volta “nem que seja por poucos momentos”, mas o samurai assegura-lhe que a volta será “pela somatória de sete vidas”. Dormem naquele que foi o pobre leito nupcial, e a sugestão de que ambos estavam com bem pouco sono indica que o samurai e sua amada tiveram uma noite sexualmente ativa. Pois é um clima de insatisfação sexual que domina esse primeiro episódio: uma elipse, após o comentário do casal recém unido de que “não estavam com sono” e preferiam estar juntos, temos o rosto – satisfeito – do samurai atingido pelo sol da manhã. Só nesse momento percebe que a casa está completamente destruída e em ruínas miseráveis: trata-se de um topos muito conhecido da narrativa sobrenatural japonesa, imortalizado no cinema pelas seqüências finais do episódio que costura as narrativas do já citado Ugetsu, de Mizoguchi, e que demarca a impossibilidade de se separar a realidade daquilo que é sonho (ou pesadelo), para além de qualquer efeito de ambigüidade tão apreciado no Ocidente. Mas as opções de Kobayashi nesse primeiro episódio de Kwaidan destroem esse frame de terror poético: o samurai, com uma perfeita máscara nô de loucura, vê o corpo morto da amada e seus cabelos, simulacro de serpentes, a perseguí-lo, dotando tudo de um equivocado ar involuntariamente cômico. Tratou-se de sobrecarregar a mensagem de índices fantasmagóricos, coisa que seria completamente dispensável, pois a fotografia e a inteligente manipulação de ruídos de áudio – os ruídos e a ação estão clivados, o que acentua a irrealidade da loucura que o marido testemunha nos momentos finais do episódio – já dotavam o clímax do episódio de toda aura sobrenatural que necessitavam.




No segundo conto, “A Mulher da Neve”, o melhor de todos em nossa opinião, temos uma explosão selvagem de visualidade feroz, expressionista. Trata-se de um universo complexo, com seus lagos gelados e tempestades de neve, inteiramente construído em estúdio. O céu que vigia os protagonistas do episódio é pintado com afrescos à la Dalí de olhos multicoloridos. A trama sonora, urdida pelo genial compositor Tôru Takemitsu – colaborador usual de grandes cineastas e responsável em parte pelo tremendo impacto renovador na cinematografia fantástica causado pelos filmes de outro grande realizador, Hiroshi Teshigahara – é mais discreta, mas usualmente eficaz. Não há sinal, nessa segunda narrativa, de dispositivos narrativos de sobrecarga, que empobrecem a conclusão do primeiro episódio: a trama flui sem interferências nem exageros caricatos. O episódio, aliás, segue bem de perto o conto de Hearn e é um exemplo magnífico de uma bela adaptação cinematográfica de um texto literário. As interferências e diálogos são resumidos ao mínimo funcional, fazendo valer o ditado japonês que Hearn cita nesse conto: “Quando há desejo, os olhos falam mais que a boca”. Esse fino jogo de olhares e desejo alcança o clímax na longa seqüência na qual a “senhora da neve”, transmutada em moça interiorana, lava os pés para adentrar o tatame central da casa de Minokichi: são olhares de desejo oblíquos e velados, além de sugestões de sedução veladas por rituais sociais.





A trama – desta vez, uma adaptação direta, e não como no primeiro episódio, que era claramente uma leitura do universo de Lafcadio Hearn, do conto “Yuki Onna”, que consta da coletânea de narrativas Kwaidan – trata de dois lenhadores cercados por uma terrível tempestade de neve. Resolvem passar a noite em um pequeno casebre às margens de um riacho revolto, meio congelado, e desmaiam exaustos. Nesse momento, uma fantasmagórica mulher toda branca – aqui, as proezas e malabarismos fotográficos de Kobayashi e do cinematografista Yoshio Miyajima alcançam seu ápice, pois a combinação da maquiagem e da fotografia em cores frias cria uma aura convincente em torno dessa “senhora da neve”, de lábios brancos e boca azulada e escura – se debruça sobre o mais velho, matando-o com seu hálito gelado. O mais jovem testemunha tudo transido de medo, paralisado: contudo, quando a “senhora da neve” se debruça sobre ele para matá-lo congelado, há um momento de hesitação. Logo, ela afirma que o poupará, contanto que o jovem, de nome Minokichi, guarde segredo e não conte o que testemunhara para ninguém, “nem mesmo para sua mãe”, frisa a aparição. Minokichi sobrevive e se recupera, aos poucos, mas respeita a promessa e jamais conta o que realmente matou o lenhador mais velho. Um dia, ao final do dia de trabalho, Minokichi cruza com uma garota misteriosa, que convida para passar a noite em sua casa. A cena em que a garota lava os pés antes de adentrar o tatame central da casa é bastante estudada e cheia de sugestões eróticas sublimadas, que se confirmam no enlace amoroso da jovem com o lenhador. Juntos, têm um casal de filhos e uma vida feliz ao extremo. A moça jamais envelhece e sua felicidade contagia mesmo a sogra e os vizinhos. Neste segmento, predominam cores quentes, que remetem para a fotografia empregada por Akira Kurosawa em alguns de seus melhores filmes (como Sonhos), lembrando os tons vivos de certas telas de Hokusai, Hiroshige ou Van Gogh. Uma noite, Minokichi observa a esposa em seus afazeres domésticos e percebe uma perturbadora semelhança com a aparição que matara seu companheiro. Conta, então e pela primeira vez, a história, o que havia acontecido na mata gelada e seu encontro com a “senhora da neve”. A moça não desgruda os olhos de um pequeno serviço doméstico que realiza, antes de confrontar seu esposo: ela era de fato a aparição, e nela se transforma por força da narrativa recém-contada, como uma confissão e um exorcismo as avessas. Novamente, a fotografia do filme realiza milagres, com a transformação da moça em “senhora da neve”, pela utilização de cores frias em alguns campos da imagem na tela, como se houvesse uma transição do universo claro e vivo da felicidade familiar para o ambiente azulado e escuro da tragédia. Mas a “senhora da neve” não cumpre sua promessa: diante dos filhos, que dormiam, recua, mas jura que se algo de mal a estes fosse feito, voltaria para reclamar sua vingança. Sai da casa e desaparece na neve repentina e no céu transfigurado. O marido, que estava fazendo sandálias de passeio para a esposa e para os filhos, coloca, na cena final desse episódio, as sandálias vermelhas da esposa, qual oferenda, fora da casa, na entrada da floresta, e lá são cobertas de neve.






O terceiro episódio segue de perto o conto de Hearn “The Story of Mimi-Nashi-Oishi”. Trata-se da visão de Hearn para o intrincado e quase infinito ciclo de narrativas em torno da chamada “saga do clã Taira (ou Heike)”, desenvolvida pelos mais diversos narradores, cronistas, romancistas e historiadores japoneses e, até hoje, considerado com muito carinho naquele país. Trata-se da luta sangrenta, desfechada no século XII de nossa era cristã, entre os clãs Taira (ou Heike) e Minamoto (ou Geishe) pela posse do trono no Japão, com a vitória total dos últimos. Tal vitória precipitaria a formação do shogunato – ou seja, uma administração na qual líderes militares teriam supremacia sobre imperadores manipuláveis –, forma administrativa seguida no Japão de 1192 a 1868 e que encontra ressonâncias até o final da Segunda Guerra Mundial. A estrutura de poder imperial japonesa – baseada na supremacia e disputa entre e imperadores efetivos e “retirados” – facilitou sucessivas guerras civis, alimentadas por complexas intrigas palacianas. O desfecho da saga de batalhas entre os Taira e os Minamoto nada deve às melhores tragédias ocidentais – durante batalha final, que se deu no mar em Dano-no-Ura, após a aniquilação das tropas do clã Taira a matriarca da família, Nii-no-Ama, atirou-se às águas carregando o neto, o imperador Antoku, de apenas oito anos de idade – como As Troianas de Eurípedes ou Hamlet de Shakespeare, só que no plano concreto do fato histórico. Logo, lendas e narrativas de terror sobrenatural surgiriam, a par e passo com belas e multicoloridas representações visuais e literárias que, como camadas, preenchiam lacunas e ampliavam o efeito da narrativa histórica original. Um dos principais personagens desse drama, desencadeador da revolta de Hôgen (1156-1158), uma das primeiras da série que levaria ao extermínio do clã Taira, o “imperador retirado” Sutoku, por exemplo, transformou-se em um ser fantástico, de cabelos e unhas imensos, o demônio das montanhas ou Tengu na tradição oriental. Ueda Akinari colocaria esse demônio-imperador em seu conto mais apreciado no Japão, “Shiramine”. No cinema, a saga ganharia uma transposição de pura poesia em forma de imagem com o filme não por acaso batizado A Saga do Clã Taira (Shin heike monogatari – 1955), de Kenji Mizoguchi.






Tanto o conto de Hearn quanto o episódio cinematográfico de Kobayshi principiam por evocar as lendas e superstições que surgiram em torno da região na qual a batalha decisiva de Dano-no-Ura se deu, como o surgimento de caranguejos com formas em suas carapaças que lembram rostos humanos – chamados pelos pescadores de caranguejos Heike, pois os rostos seriam dos guerreiros daquele clã mortos e caídos no mar – ou o fato de a região ter sido considerada “assombrada” por 700 anos. A descrição da batalha naval de Dano-no-Ura, recriada pela música e poesia do protagonista, ganha um tratamento sofisticado na visão de Kobayashi: como nos quadros japoneses de Hiroshige, um mar de cores das vestes desenha formas ao som melancólico e choroso da biwa, instrumento musical da personagem central, Hoichi, o sem-orelhas. As imagens de quadros sobre a batalha se confundem com as seqüências filmadas, criando algo como uma tensa linha narrativa entre as formas coloridas em duas dimensões e a atuação de atores em ambientes expressionistas de intensa estilização: céu amarelo e o mar literalmente tinto de sangue, emoldurando estandartes, armaduras e rostos brancos, à moda do teatro nô ou kabuki. A trama, extremamente simples, embora trate-se do episódio mais extenso do filme – e um dos contos mais extensos do livro –, versa sobre o destino de Hoichi: exímio na biwa, o jovem cego encontra pousada em um templo, como uma espécie de noviço. Uma noite, na qual esperava um dos monges, que saíra para prestar serviços, Hoichi foi chamado, aparentemente por um samurai, para cantar para uma “platéia muito distinta”. Como a tal “platéia” desejava ouvir a saga do clã Taira, bastante extensa, Hoichi passa a visitá-los toda a noite, aparentando desde então permanente esgotamento e stress pelas suas atividades noturnas. Logo, o principal monge descobre que se trata dos fantasmas do clã Taira-Heike, voltando da tumba para obterem prazer estético. Após alguns auxiliares do templo terem recolhido Hoichi do cemitério dos Heike em meio à uma chuva intensa, iluminados pelas chamas demoníacas que se dizia eram vistas nesse local – as Oni-Bi. O chefe do mosteiro resolve, para evitar que o jovem músico fosse destruído pelos espíritos, realizar um exorcismo: escreve, com auxílio de um acólito, os sutras sagrados no corpo inteiro de Hoichi, que recebe a instrução de não fazer ruído quando da visita do samurai fantasma que o levava à presença da “platéia” de fantasmas. De fato, o samurai apareceu, e não vendo Hoichi – sentado diante da biwa, em pose de meditação – dispôs-se a ir embora quando percebeu as orelhas do músico, que arrancou. Apesar de mutilado, Hoichi, denominado doravante “o sem-orelhas”, tornou-se, graças à sua aventura, um músico conhecido e, logo, muito rico.






O episódio de Kobayashi segue o conto de Hearn muito, mas muito mesmo, de perto. Mas existe uma diferença essencial que é verdadeiro “ponto cego” não tanto do filme, mas mesmo da narrativa cinematográfica: o foco narrativo. Afinal, o conto de Hearn adota como ponto de vista central a “cegueira” de Hoichi, que garante sua confiança e destemor diante de uma assembléia de espíritos em um cemitério. A revelação da natureza sobrenatural dos ouvintes só ocorre, no conto, em sua segunda metade, seguindo o formato tradicional do fantástico do século XIX, com a ambigüidade diante do fenômeno garantida pela cegueira do protagonista. Kobayashi optou por uma fascinante representação poética dos espíritos, em imagens de colorido intenso e beleza. Mesmo a materialização dos Oni-Bi, como chamas em dupla exposição, que poderia comprometer a estrutura narrativa com sua literalidade – coisa que ocorreu, como vimos, no primeiro episódio – constituem imagens estranhas, surreais e belas. O tom de tristeza e a atmosfera trágica de uma história terrível que seres sobrenaturais optam por sublimar, como um último e deseperado desejo estético, no formato poético, só poderia ser garantido dotando a música, elemento central mas intangível na narrativa de Hearn, de forma. É o que acontece pelas mãos de Tôru Takemitsu: tanto o poema quanto a música evocada nesse curioso instrumento de cordas que é a biwa criam o clima de uma tragédia de dimensões imensas, postergada e deslocada para o limitado universo do sobrenatural. E qual o elemento disparador dessa tragédia? O acaso, sem dúvida, seguindo uma tradição tão japonesa: é ele que lança Hoichi no caminho dos espíritos e que faz que suas orelhas permaneçam visíveis no embate final. É bem verdade que a bela mas inverossímil imagem do músico em pose de meditação, ainda silencioso, com jatos de sangue a sair-lhe das cavidades das recém-retiradas orelhas, que faz parte do conto de Hearn, não devem ter agradado a Kobayashi, que optou por longa e climática – lenta mesmo, em alguns momentos – cena de tortura.






O último conto é “Dentro da Xícara de Chá”: não se trata de uma adaptação direta dos contos de Kwaidan, e essa narrativa visual, apesar de suas belas e sombrias imagens e de um desfecho no limiar do enigmático, apresenta alguns problemas estruturais e mesmo de continuidade, que o fazem o mais frágil de todos os relatos. Trata-se de um esquema “narrativa-dentro-de-narrativa”, com uma história moldura na qual somos apresentados a um escritor, no Japão do século XIX, escrevendo uma história sobrenatural sobre samurais em algum distante momento da mítica era medieval japonesa. Nesse momento, o espectador “entra” na narrativa daquele escritor: um guerreiro samurai, certa vez, pretendendo aliviar sua sede, vê o reflexo de um estranho em sua xícara de água e de chá. Bebe, com certe asco, ainda assim, mesmo tendo percebido que o fenômeno tornara-se mais definido a cada xícara que quebrava, enfurecido com a aparição. À noite, enquanto montava guarda, é visitado pela aparição da xícara, que fere a golpe de espada. É visto como algo amalucado pelos colegas samurais, que não encontram esse estranho supostamente ferido. Dispensado, o samurai que “bebera” a aparição vai para casa e se embriaga, quando é visitado por homens estranhos que se revelam aparições mandadas pela primeira, a da xícara de chá. Uma luta, coreografada de forma extremamente elaborada, se dá entre o samurai e as aparições. Quando estas o cercam, a história se interrompe e voltamos à moldura, do contista no século XIX: o autor, estranhamente desaparecido, está devendo o manuscrito do conto que acompanhamos até aqui ao seu editor, que vai cobrá-lo, sendo nessa atividade auxiliado pela empregada. A seqüência final é enigmática, no limiar do incompreensível, mas trata-se de uma bela aventura cinemática, que sucessivas gerações de diretores de filmes de terror não deixariam de seguir e homenagear: em meio à uma sombria e fantasmagórica fotografia, no interior do poço de água, o rosto já sobrenatural do velho escritor aparece, sugerindo uma ligação com o final do primeiro episódio, o rosto enlouquecido do samurai refletindo na água do poço, como se absorvido pelas águas. Os problemas estruturais são bastante visíveis, mesmo em nosso pequeno resumo (fantasmas que ora se ferem, ora são indestrutíveis; contos que começam e não são concluídos; personagens que transformam-se em aparições sem qualquer lógica narrativa ou verossimilhança que sustente tal mutação etc.), mas a verdade é que a estrutura desse último conto sustenta-se quase que em visões isoladas, como o non-sequitur perpétuo da visão deturpada pela alucinação. Kobayashi delineia o futuro da narrativa de terror, diluída hoje em sucessivos blockbusters de sucesso, em filmes no qual o Mal sobrenatural onipotente amarra as pontas soltas de uma narrativa que só possui lógica se encarada como um pesadelo malsão. Assim poderiam ser resumidos filmes como Ringu e Ju-On.






Acompanhando a trajetória de Kwaidan, percebemos lampejos de sucessivas tradições do fantástico japonês, mesmo daqueles filmes que acabamos por negligenciar – como o fascinante e enigmático Rashômon (1950) de Akira Kurosawa, talvez um dos melhores, mais ricos e complexos, filmes da história do cinema. O Japão mítico é fonte inesgotável desde tempos muito antigos, como prova o Ugetsu Monogatari de Ueda Akinari. É perceptível, observado a selvagem concepção visual de Kobayashi, que um fantástico cinemático, quase um contínuo e belo delírio de formas saídas de um pesadelo, era a proposição, que foi interpretada em nossa época de horrores reais muito palpáveis como a criação de crianças-demônio saídas da televisão e do telefone, objetos de culto globais, ou em massacres/torturas elaboradas, tornadas “fato estético”. Trata-se de ume leitura, evidentemente factível, o que não significa que seja nem a única nem a melhor possível: um terror de poesia e sonho, tragédias deslocadas da amplitude para universos limitados, mas igualmente heróicos, ainda aguardam um diretor do porte de Kobayashi para a codificação cinemática definitiva no século XXI.




A METAFÍSICA CONCRETA DO MEDO


















Por Alcebíades Diniz


25/10/2008  Revista Speculum